Quando o assunto é alfabetização, infelizmente os resultados do país não são nada animadores, como mostram diferentes estatísticas. Entre elas, o PIRLS (sigla em inglês para Progress in International Reading Literacy Study), exame de alfabetização aplicado a estudantes de 65 países, em que o Brasil ficou entre os seis últimos colocados recentemente. Como as provas foram realizadas em 2021, é bem provável que o desempenho dos alunos tenha sofrido influência do fechamento das escolas por conta da Covid-19.
No entanto, para a educadora e escritora Luciana Brites, cofundadora do Instituto Neurosaber (PR), a pandemia apenas potencializou um problema que já existia, que envolve a discrepância entre o ensino público e o privado no país, entre outros aspectos. O próprio PIRLS ressalta essa desigualdade, uma vez que a diferença no desempenho entre estudantes de alto e baixo nível socioeconômico foi de 156 pontos.
“Costumo dizer que a alfabetização é a cereja do bolo. Antes disso, temos de trabalhar a massa, o recheio, a cobertura… Trata-se de um processo de neurodesenvolvimento que começa no período da educação infantil e precisa ser estimulado em casa e na escola”, explica Luciana. Isso porque vários estudos mostram que existem algumas habilidades preditoras do sucesso da alfabetização, como o desenvolvimento do vocabulário e da consciência fonológica (isto é, a capacidade de perceber e manipular os sons da fala).
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Conversar é preciso…
Você sabia que os bebês são capazes de ouvir sons desde a 20ª semana de gestação? A ciência já comprovou também que muitos deles conseguem reconhecer as vozes dos pais e as músicas que ouviram com frequência no período. Ok, mas o que isso tem a ver com o aprendizado da leitura e da escrita? “Conversar com a criança enriquece o seu vocabulário, o que está diretamente relacionado à alfabetização”, afirma a pedagoga Luciana Brites.
Segundo a especialista, a aquisição da linguagem acontece espontaneamente. Qualquer pessoa que for exposta a uma língua vai aprender a falar, mais dia, menos dia. “No entanto, os adultos, e principalmente os pais, são os mediadores dessa experiência”, diz.
Mas não é preciso nada elaborado, pois o que importa mesmo é a interação. Uma pesquisa da Universidade Harvard, em parceria com o MIT, de 2017, mostrou que o impacto da conversação dentro de casa no aprimoramento das habilidades linguísticas é mais relevante do que o vocabulário (quantidade de palavras ditas) e do que o status econômico familiar.
… e cantar também
Além de contribuir para o desenvolvimento da linguagem, as músicas favorecem a memorização, o ritmo e a concentração, habilidades essenciais para aprender as letras do alfabeto e a dividir a língua em unidades de som, por exemplo. Essas são algumas das razões pelas quais cantigas de roda, parlendas e trava-línguas são utilizadas amplamente na educação infantil. Isso sem contar as vantagens relacionadas à socialização, à criatividade… Por isso, você pode e deve lançar mão de todos esses benefícios em casa, com o seu filho, naturalmente. Não só com músicas para crianças, mas também com as que os adultos da família costumam ouvir – por que não?
Leia para (e com) a criança
Quando estava grávida, a jornalista Flávia Tavares, 45, leu sobre a importância de o bebê ouvir a voz dos pais desde cedo. Então, além de conversar, criou o hábito de cantar e ler para a filha, Helena (hoje com 7 anos), antes mesmo de ela nascer. “Eu ainda não tinha livros infantis, então comecei com um que era meu e lia muito na infância, O Menino Maluquinho, do Ziraldo”, recorda-se.
O hábito continuou, claro, depois do nascimento. “Quando era bebê, eu e o pai líamos para ela na banheira, com aqueles livros de banho, e na cama. Ela começou a ‘juntar’ as primeiras letras aos 5 anos e, aos 6, começou a ler sozinha. Hoje em dia, até traz livros da biblioteca da escola, mas ainda mantemos o ritual antes de dormir”, conta Flávia, que acabou comprando um exemplar novo da obra de Ziraldo especialmente para a filha.
Além de ler com e para a criança, para que ela comece a se familiarizar com as letras, os enredos e os diferentes gêneros de texto, a professora Silvia, da Comunidade Educativa CEDAC, destaca a importância da leitura para aumentar o vocabulário e o repertório cultural dos pequenos. “Por meio da literatura, com a ajuda dos pais, as crianças acessam diferentes gêneros [de texto], o que amplia o conhecimento sobre palavras, enredos, histórias”, diz. Assim, como explica a especialista, elas terão onde recorrer quando chegar o momento de escrever seus próprios textos, por exemplo.
Luciana chama a atenção, ainda, para a contação de histórias, uma das maneiras mais antigas de transmissão de conhecimento, que também traz inúmeras vantagens para a aquisição da linguagem e, por consequência, da leitura e da escrita. E não precisa nem dizer que os pequenos adoram. “Eu mesma cresci em um ambiente de poucos livros, porque venho de uma família humilde. No entanto, lá em casa, nunca faltaram bons ‘causos’”, diz a educadora.
Errar faz parte
Assim que começam a compreender os mecanismos da leitura, as crianças querem ler e escrever tudo. Os pais podem aproveitar esse entusiasmo e incentivar o filho a fazer listas (como as compras do mercado ou uma receita), escrever cartões de aniversário, ler juntos manuais de instruções ou embalagens e assim por diante. Ou seja, tudo o que faz parte do dia a dia da família. “A leitura é uma prática social. Portanto, quanto mais essas atividades fizerem sentido para a criança, a fim de que ela entenda para o que serve a leitura e a escrita, maior será o interesse dela”, afirma a professora Silvia.
Mas, corrigir os erros ortográficos dos pequenos nessa fase pode ter um efeito negativo. “Se a criança escreveu chocolate com X em vez de usar CH, que representam o mesmo som, isso demonstra que ela compreendeu como funciona o código e conseguiu se comunicar, pois entendeu a mensagem”, explica o educador Luiz Camacho, coordenador do ensino fundamental da escola Estilo de Aprender (SP). Assim, é melhor deixar essa preocupação para o professor, que sabe o momento e a maneira certa de fazer as correções, de modo que não interfiram na autoestima do aluno.
Agora, de acordo com Camacho, se a própria criança questiona a maneira como escreveu diante de um possível erro, significa que já está refletindo sobre a ortografia e aí tudo bem os pais fazerem uma ou outra correção, quando ela levantar alguma dúvida. “Não podemos esquecer o quanto a nossa língua é difícil. Nesse momento, em vez de criticar, valide e comemore as conquistas do seu filho e deixe o restante com a escola”, recomenda o educador.
Uma coisa por vez
Afinal, existe idade certa para a criança ser alfabetizada? Do ponto de vista cerebral, há o que se chama de janela de oportunidades, ou seja, período em que o órgão adquire certas habilidades com mais facilidade. Em relação ao aprendizado da leitura e da escrita, seria entre 5 e 8 anos, período que coincide com os primeiros anos do ensino fundamental. Por isso, os pais devem conter a ansiedade e ter paciência ao longo dessa jornada. “Convém não acelerar as etapas se o intelecto não estiver preparado ainda. O que vale para tudo em relação ao desenvolvimento infantil: ler, vestir-se sozinho, dormir fora de casa…”, afirma Camacho.
Então, fica o recado: tenha paciência e evite comparações com os colegas de classe do seu filho. Dentro e fora de casa, a alfabetização tem de acontecer de maneira lúdica, sem pressão. “As crianças têm suas singularidades e, se houver alguma suspeita [de atraso no desenvolvimento] que precise ser investigada, ninguém melhor do que a escola para saber disso”, completa a professora Silvia.
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O esforço compensa. É o que mostra uma pesquisa publicada este ano na revista científica Psychological Medicine, feita por pesquisadores da China e do Reino Unido. Ao avaliar 10 mil adolescentes, os cientistas concluíram que o contato com a leitura de maneira prazerosa no início da infância favorece o desempenho cognitivo e a saúde mental na adolescência.
Matéria publicada originalmente na Crescer Educação. Acesse aqui.